A rejeição e suas marcas na alma (Salmo 109)
Introdução
Os salmos são catalogados pelos estudiosos e estudiosas da Bíblia a partir do que chamamos gêneros. O gênero
é uma forma típica de escrita, que nos permite, logo de
cara, identificar de que tipo de texto estamos falando. No
caso dos salmos, existem os de ações de graças, os didáticos, os de lamentação, os de peregrinação, entre outros.
Para mim, existe um gênero particularmente indigesto,
mas bastante presente: o salmo de imprecação.
Ele é difícil de ler e de se meditar sobre, porque desafia
nossa “cristianidade”. Explico-me. Gostamos de parecer
boas pessoas aos olhos de todos. É complicado reconhecer
que sentimos inveja, ódio, desdém e outros sentimentos
que parecem menos aceitáveis. Disfarçamos nossas emoções negativas sob o manto de uma pureza espiritual que
pode esconder dores profundas de alma e sentimentos
nada bons de se olhar de perto. Mas os salmos de imprecação são justamente esse viés da fé israelita. São salmos
de maldizer.
O salmista geralmente está passando por uma situação
tão desesperadora que de dentro dele afloram, em igual
proporção, a raiva, o desejo de vitória sobre os adversários, a fé em Deus e a esperança. Ele se desnuda diante
de Deus em seu desejo por justiça. Revela a força de seus
sentimentos. E aguarda que Deus execute contra o inimigo
algo que o leve à forra. Por que tais coisas estão presentes
na Bíblia? De que maneira esses salmos tão antigos podem
se conciliar com os mandamentos de Cristo? Ou de que
modos eles nos desafiam a vencer nossos próprios motivos
de ira contra as pessoas?
Um olhar sobre a humanidade das emoções
A Bíblia não conhece definições como racismo, misoginia ou xenofobia. Mas ela identifica as ações decorrentes
desse tipo de postura e expõe claramente seus efeitos danosos. Ela recomenda cuidar dos idosos, das viúvas e dos
órfãos e a amar o estrangeiro justamente porque são grupos vulneráveis, frequentemente abandonados e maltratados. Ela destaca que o pobre deve ser protegido. Exalta a
prática da justiça contra os menos favorecidos. Levanta-se
em defesa de quem não tem o que comer, onde morar ou
que sobrevive do seu salário.
"Gostamos de parecer boas pessoas
aos olhos de todos. Disfarçamos
nossas emoções negativas sob o
manto de uma pureza espiritual que
pode esconder dores profundas de
alma e sentimentos nada bons de se
olhar de perto."
Por isso, não é difícil imaginar que no livro bíblico das
orações, o clamor desse tipo de pessoa não seja registrado
de maneira explícita. É como podemos enxergar o salmo
109. Não temos clareza de que tipo de injustiça o salmista
é vítima, mas podemos perceber que ele sofre muito com
calúnias contra sua pessoa (v. 2,3); é maltratado no relacionamento com essas pessoas (v. 4); suas boas ações não
mobilizam o coração de seus adversários (v. 5).
Dos versos 6-15, temos uma série de imprecações contra o seu opositor. O peso dos desejos de vingança é muito
forte. Isso não nos permite identificar quem é o ofensor,
mas nos revela muito do coração do salmista. Ele está tomado por uma ira muito profunda. Ele se sente tão ultrajado que não quer mais memória do seu adversário. De
algum modo, ele se sente impotente para reagir e por isso
sua oração é sua única válvula de escape emocional.
A partir do verso 16, ele volta a referir-se às ações de
seu inimigo: trata-se de uma perseguição contra alguém
que não pode reagir a ele: é pobre, necessitado e quebrantado de coração. Perseguir esse tipo de pessoa é atrair o
mal para si, porque Deus pessoalmente é o defensor deles,
conforme toda a teologia do Antigo Testamento. É por esta
razão que o salmista diz que o ofensor “amou a maldição”
e “não quis a bênção” (v. 17).
Como dói ser rejeitado!
O salmista passa então a expor, a partir do v. 21, os
motivos pelos quais ele carece da misericórdia e da intervenção de Deus contra esse inimigo tão poderoso. Ele se
reconhece como pobre e necessitado. Essas duas palavras
aparecem muito em conjunto nos salmos. Mais do que
apenas um estado social, elas denotam desamparo. É uma
pobreza que não se sustenta e que por isso depende do
favor de quem é mais abastecido. É praticamente uma assunção de dependência econômica. Esse estado colocava
as pessoas em condição de penúria. Elas poderiam perder
seus míseros bens, serem presas e até vendidas como escravas. Poderiam acabar na mendicância ou, no caso das
mulheres, ainda na prostituição. Ser pobre e necessitado é
estar na mais absoluta vulnerabilidade.
Por causa disso, as consequências emocionais são danosas. Ele se sente ferido de coração, evanescente como
uma sombra, jogado como um gafanhoto. São expressões
de rejeição. E como isso dói, ainda mais quando a gente
se sente inocente diante da ofensa e da perseguição recebidas! Quanta gente se sentiu assim ao longo da história?
Os próprios judeus, também os negros, os povos indígenas
das Américas, os autóctones da Austrália, os uigures da
China? A gente recebe e pratica esse tipo de sentimento e
não aprende a lição sobre ele... os judeus rejeitam os gregos; os brancos rejeitam os negros; os homens humilham
as mulheres... e de vez em quando a balança da história se
inverte e os grandes impérios passam a ser rechaçados e
rejeitados por aqueles a quem antes oprimiam... e nunca
paramos para pensar no quanto isso é dolorido e danoso
e rejeita a imagem de Deus que está em todo e qualquer
ser humano!
Assisti a um vídeo no qual uma menina pequena, de
uns oito anos de idade, depois do assassinato de mais um
negro, vítima da violência policial nos Estados Unidos,
chorava profundamente, sacudida pela dor, perguntando: “Por que vocês não conseguem gostar de nós? Por que
nossa cor ofende tanto?”. E eu vejo aquela menina e meu
coração estremece, porque ela está manifestando o sentimento do salmista. O coração dela está ferido, ela se sente
uma sombra que passa e ninguém percebe, ela é jogada
como uma praga ao canto, marcada para morrer em algum
momento. Como isso não nos mobiliza para pensar e agir
diferente?
A curadora presença da graça
No ano em que definimos como tema nacional da Igreja Metodista que “discípulas e discípulos nos caminhos da
missão anunciam as boas notícias da graça”, precisamos
mesmo crer e proclamar que “existem as pessoas que amaldiçoam, mas que Deus abençoa” (v. 28) e que Deus é, de
fato, o defensor daqueles e daquelas que sentem a angústia
e a dor de serem desprezados em seus corpos, feitos à imagem e semelhança de Deus (v. 27).
A Igreja do Senhor tem o compromisso de restaurar
corações feridos. De dar sentido, por meio da Palavra de
Deus, à vida das pessoas marcadas pela rejeição, mostrando a elas o caminho da casa do Pai. Ao ler os salmos de
imprecação, sinto-me incomodada porque não quero ver a
dor de quem sofre assim tão explicitada... quero disfarçar
e esconder. Mas a Palavra não me permite. Ela me confronta... ela me desafia... ela me pede uma ação que estanque a
angústia. Que farei diante disso?
Bispa Hideide Brito Torres
8ª Região Eclesiástica (TO, DF, GO e MT)