Aprendendo com os Salmos
Desde a minha mocidade
(Salmo 71)
Dom Helder Câmara, figura de grande reconhecimento no meio eclesiástico, já falecido, escreveu: “Agora que a velhice começa, preciso aprender com o vinho a melhorar envelhecendo e, sobretudo, a escapar do terrível perigo de, envelhecendo, virar vinagre”. Não é difícil encontrar idosos que envelhecem e de vinho que passam a vinagre. Na metáfora do antigo clérigo, o vinagre é azedo, difícil de engolir, mesmo tendo os seus valores. E há gente que envelhece assim, amargurando-se. Não faltam motivos, desde enfermidades até mesmo a incompreensão de si mesmo, dos outros sobre si e sobre a passagem do tempo. Ademais, também é verdade o que disse o escritor brasileiro Nelson Rodrigues, eternamente mal-humorado, que os canalhas também envelhecem.
Não é porque alguém está velho que se pode ignorar e esquecer uma vida que não tenha sido vivida de modo bom e digno. Mas existe por aí muito abandono de gente idosa que, ao contrário, só fez o bem. Outro dia, estava assistindo a um vídeo de um famoso juiz que lá no Nordeste trabalha dando aposentadoria a pessoas da roça. Ele entrevistava uma mulher que estava pedindo pensão pelo marido. Ele havia falecido há um tempo e somente agora ela se despertou que poderia ter direito ao benefício. Enquanto a entrevistava, ela falava de uma vida inteira ao lado do marido. E suspirou: “Sou uma mulher sofrida, doutor. Sou uma mulher sofrida. Ele ficou doente por cinco anos. Cuidei dele. Sou sofrida, doutor. Cinco anos. Sou uma mulher sofrida. Deus lá no céu é quem sabe”. A frase, repetida muitas vezes, não era dita com raiva, nem dor, nem indignação. Era dita de um jeito comum, de quem entende e aceita. Isso não impacta menos quem escuta...
O salmista também é um homem sofrido. Idoso, ele se apresenta diante de Deus. Está sofrendo as dificuldades e as limitações de seu tempo. E os inimigos se aproveitam de sua debilidade. Ele recorre à memória e clama a Deus, lembrando o relacionamento deles, que vem “desde a mocidade”. Vejo na fé simples deste homem alguns mandamentos sobre a nossa saúde física, mental e espiritual.
Ordenaste que eu me salve (v. 3)
Achei muito interessante a ordem que ele recebe de Deus. Salve-se! É uma ordem. Às vezes vivemos nossa vida de modo tão entregue e, sem perceber, nos perdemos. Vamos perdendo a alegria, a saúde, a curiosidade, o brilho nos olhos. Esta vida era para ser boa. Deus desejou isso desde o começo, mas várias coisas, depois do pecado, seguem contribuindo para que a gente se perca.
No entanto, o caminho para o reencontro com Deus e conosco mesmo está aberto. Uma das estratégias usadas pelo salmista é justamente esta memória: “desde a mocidade”. Ele afirma várias vezes no salmo que Deus é o seu refúgio. Refugiar-nos em Deus é uma excepcional forma de nos salvar. Afinal, Deus restaura a nossa identidade, preserva a nossa vida, salva a nossa alma e reconstitui a nossa história! A fim de não nos evadirmos de nós mesmos, de perder os nossos valores, é primordial a gente retornar Àquele que nos criou, pois Ele exatamente pode nos dizer quem somos!
Os meus lábios estão repletos do teu louvor (v. 8)
Tenho desenvolvido mentorias pessoais e em grupo. Enquanto ensino, aprendo muito. Percebo as dores dos mentorados e mentoradas. Vejo suas aflições e lutas internas. E percebo uma coisa em comum: existe uma necessidade de encarar nossa vida, inclusive a velhice, com uma disposição para a alegria. A alegria do Senhor é a nossa força, diz a Palavra de Deus. Sim, porque existe uma potência na pessoa alegre.
O salmista pede socorro dos inimigos, sente o peso da idade, mas a todo o tempo ele reforça o que o trouxe ao presente momento: alegrar-se em Deus. Para não virar vinagre, é preciso alimentar a alegria, fortalecê-la, colocá-la diante dos olhos o tempo todo. Como diz o compositor Gerson Borges, Deus tem que ser “a alegria da minha alegria”. É algo que muita gente ignora como força motriz da vida.
A alegria é resultado de várias outras coisas. De uma abertura ao novo, de curiosidade, de gratidão, de um olhar para a vida sem medo, uma disponibilidade ao outro, uma vulnerabilidade. Em minha vida, experimento o desafio da alegria a todo tempo. As pessoas sempre acham a minha risada estranha. Outro dia mesmo, uma criança me lembrou disso. Se eu fosse me esconder do medo dessa crítica, jamais poderia rir.
Mas escolhi pensar que minha risada estranha alimenta a risada de quem está triste. Rir de si mesmo é a suprema libertação. Pessoas idosas, propensas aos erros do desequilíbrio, da fragilidade muscular, dos lapsos de memória, precisam encontrar a alegria de rir de seus erros quando tantos acertos já obtiveram. E o salmista faz isso: “Para muitos sou motivo de espanto, mas tu és o meu forte refúgio”. Muita gente me olha e se escandaliza ou acha cômico – é o que ele diz – mas tu és meu forte refúgio.
A idade que renova
No mundo em que estamos, as pessoas velhas podem se sentir deslocadas e sem lugar. Mas muitas, muitas mesmo, estão se levantando para agir de modo diferente. À semelhança de Calebe, desejam lutar todas as suas batalhas, sem abrir mão de sua ousadia e força.
Elas voltam aos bancos escolares, levantam voo desde o chão, viajam até lugares distantes. Entram nas academias e fortalecem os músculos, resgatam a estima. Amam e descobrem o prazer de seus corpos – pois estão vivos! Escrevem, atuam, dançam, superam. Em Deus, isso ainda mais é uma promessa e uma expectativa dos que creem: “na velhice, darão ainda frutos, serão cheios de seiva e de vigor”. A nossa vida anuncia que o Senhor é reto.
Eu mesma, agora cultivando meus cabelos brancos, olho as rugas que começam a nascer no rosto. Compro cremes, faço uns tratamentos de beleza, cuido do corpo, mas não é porque quero negar o que já vivi. Antes, quero gerenciar meu envelhecimento, quero cuidar de mim porque sei que o melhor da minha vida está no meu futuro, no que ainda serei e viverei. Sim, quero viver pra ver o que Deus fará em mim amanhã, exatamente como o salmista!
Bispa Hideide Brito Torres
Oitava Região Eclesiástica
(DF, GO, MT, RN e TO)
hideide@gmail.com